O amor está no ar e move nossos medos mais profundos?
Hoje meu marido completa 39 anos, sendo que 13 anos (um terço exatamente) ao meu lado. Quando penso nisso, em nosso passado, presente e futuro, sou inundado por sentimentos positivos, de um amor profundo. Me sinto o homem mais corajoso e destemido do mundo. Algumas vezes nas quais senti muito medo dentro de um avião, pensava nele para me acalmar — isso quando ele não está ao meu lado me dando a mão, em uma espécie de transfusão amorosa. Fico mais corajoso. Estar ao lado de quem amo me traz paz, conforto, serenidade. E o fato dele ser uma pessoa tão doce e calma só melhora tudo. Uma sensação de plenitude. Parece papo de Igreja, né? Mas não é, não. Realmente me sinto assim. Coisa de outra dimensão, numa pegada do filme “Ghost — do outro lado da vida”? Que nada, nada mais terreno que isso (se bem que no ar não somos terrenos. Desculpa, não consegui evitar a piada de tiozão do pavê).
E “pavê” me lembrou “pavor”, como na vez que, em 2016, um médico pediu uma ressonância (ou foi tomografia?) de meu crânio. Enfim, foi aquele exame que você entra dentro de um tubo apertado, tem de ficar uns 20 minutos imóvel ouvindo barulhos medonhos e numa sensação de estar dentro de um caixão debaixo da terra. E olha que nem claustrofóbico eu sou! O que isso tem a ver com avião? De fato, nada. Mas há relação direta com o tema desse texto: o amor vence o medo (no meu caso tem vencido, mas não sem sair bem esfarrapado e com feridas). Lembro que naquele dia eu fiquei muito nervoso com aquela experiência que até então eu desconhecia. Mas inventei um jogo na hora do aperto: ficar pensando em momentos bons vividos com Rafa. E aquilo foi gradativamente me acalmando. Resolveu o medo que senti? Claro que não. Mas deu tudo certo e consegui chegar ao fim do exame sem apertar aquele “botãozinho do pânico” para parar o procedimento.
Como todo ser amado, nem sempre ele está disponível em sua plenitude. Como em um voo, em 2014, entre Nova York e São Paulo. Rafa falou: “Não tenha medo, vou segurar na sua mão e tudo vai dar tudo certo, nem precisa tomar remédio hoje”. Era uma viagem noturna. E ele dormiu quando o embarque mal tinha terminado. Não sei o que era maior: o pânico da decolagem ou a raiva (ou seria inveja?) do sonolento que me enganou e que naquela hora já estava quase roncando. Mas como eu amo vê-lo bem, devo ter tirado daí a força para lidar, sozinho, com o voo (claro que não preguei o olho um minuto sequer até o pouso no aeroporto de Guarulhos).
Neste voo aqui ele ficou acordado e me deu apoio
UM DEPOIMENTO AMOROSO
A panicada Débora Viana tem uma relação de altos e baixos (ou seria de decolagens e aterrisagens?) com o tema desta matéria. Ela começa a entrevista contando que viveu um relacionamento afetivo à distância entre 2020 e 2021 — ela mora em São Paulo e ele morava no Rio de Janeiro. Era pandemia, o que tornava tudo pior. “Durante esse relacionamento fiz dezenas de voos; em um determinado momento, ele se mudou para outra cidade ainda mais distante para ‘facilitar as coisas’ e sempre foi a mesma coisa: momentos de maior ou menor pânico, mas sempre medicada. Talvez, na primeira vez que fui, a ansiedade de vê-lo superou o medo, mas nos outros voos, diria que não”.
Por outro lado, Débora relata que já passou por uma situação bem peculiar. Estava no aeroporto indo para Santiago, super tensa. “Enquanto eu esperava o embarque, um crushzão meu me mandou mensagem e começamos a bater um super papo. Aquilo foi tão inacreditável pra mim que não senti um pingo de medo! Só pensava em chegar logo pra voltar a falar com ele. Acho que a paixão funciona mais pra mim nesse caso”. A panicada diz ainda que quando está no avião, algo que costuma distraí-la é interagir com bebês ou crianças bem pequenas. “Me sinto ‘responsável’ por elas de alguma forma. Me acalma bastante”. Lanço a pergunta: seria algo como “dar amor a um pequeno ser acalma”? Ela responde positivamente. “Sim! Eu amo crianças! Inclusive adoro quando há bebês no voo (ao contrário de muita gente). Vejo a calma daquelas pessoinhas tão pequenas e penso ‘deve estar tudo bem’”, pontua, acrescentando que pensar nos gatos das quais ela é tutora também ajuda a se acalmar. Termino a série de perguntas com uma indagação crucial: “Então o amor pra você às vezes ajuda a afastar o medo, pelo que entendi, correto?”. A resposta? Um belo “sim”. Aparentemente, Débora, que no começo da entrevista estava mais cética em relação ao binômio “amor e medo de voar”, mudou um pouco de opinião.
Débora no aeroporto de Guarulhos, em 2024, esperando embarque para um voo até Portugal
“O amor move, pois gera forças para enfrentar situações negativas. Ele revigora e aumenta o desejo de superar obstáculos e desenvolver habilidades. Além disso, melhora a autoestima e ajuda no combate ao desânimo e a doenças”, disse a psicóloga Bárbara Falcão, do Hospital São Lucas Copacabana, no Rio de Janeiro, no texto “A importância do amor para a saúde”, que você poder ler aqui. Eu sempre costumo dizer por aqui que a combinação de terapia (para todas e todos) e remédios receitados por um psiquiatra (para quem precisa realmente) é poderosa. Acho que a partir de hoje arrisco dizer que coloco um terceiro elemento: pensar no amor que damos e recebemos ajuda nos momentos ruins. Parece papo de autoajuda, né? Mas não é, não. Inclusive para elaborar essa matéria aqui eu driblei um monte de site de igrejas e de livros de “pense positivo”.
A PSICANÁLISE, O MEDO E O AMOR
Para esta matéria, entrevistei o psicólogo e psicanalista João Ricardo Rudniski, que estudou em sua especialização “o amor como condição para a saúde mental”. Ele diz: “a morte é isso, alguém que tem medo, no fim ela tem o medo da perda das possibilidades, pois é isso que a morte faz”. Ele chama a atenção para a existência de dois medos, um que ele chama de “medo comum biológico”, que é aquele que nos orienta a não colocar a mão no fogo ou não ficar muito perto de um lugar alto sem proteção. Um medo programado, uma espécie de sistema de proteção.
Já o medo que paralisa é o medo das perdas das possibilidades. O psicanalista cita o ditado popular“enquanto há vida há esperança”, mas sugere uma nova versão: “enquanto há vida há possibilidades”. “O maior problema das pessoas é que elas se preocupam tanto com o medo da morte literal, que acabam inconscientemente realizando essa morte em vida, se poupando de possibilidades, não correndo atrás de seus sonhos, perdendo tempo com mágoas, ressentimentos e outras coisas que não valem a pena na vida”, afirma. Para Rudniskim o amor é o encontro da realização das possibilidades, pois “quem ama faz acontecer, não perde tempo, porque o amor é vida. Aquele que vive, ama, ama-se algo, por mais que possa não estar claro para a pessoa devido a algum momento que esteja passando, mas tenha certeza que o amor está aí”, conclui.
Lógico que não somos todos iguais e para muitos panicados e panicadas o fato de amar alguém ou de pensar na pessoa que faz nosso coração palpitar mais forte de nada adianta na diminuição dos efeitos da aerofobia. Em uma coluna no respeitado site português Público, as autoras Isabel e Ana Stilwell terminam um texto com uma frase de efeito: “Não há nada que meta mais medo aos medos do que a coragem de os enfrentar”. Faz pensar, não? Quando pegamos um avião mesmo com as pernas tremendo, não estamos colocando nosso pavor de voar contra a parede. Tal qual a esfinge, ele diz: decifra-me ou te devoro. E a gente se recusa a ser devorado. Não deciframos totalmente o que nos aflige, mas temos uma grande vitória quando o avião pousa. E amar contribui para isso. Amor de gente, amor de bicho, amor por um time. Ou o famoso amor próprio, por que não? Esse final do texto até que ficou com uma pegada autoajuda. Mas um pouquinho só não faz mal, não é mesmo?