Em caso de emergência, não chame o comissário de bordo
Tic, tic, tic, tic. O barulho repetitivo do botão da caneta demonstrava o terror de Gustavo. O corretor de imóveis ia para Bogotá, para participar de uma feira do setor. Não era a primeira experiência acima dos 40 mil pés de altitude. E o medo de voar também não era inédito: aparecia em cada voo que fazia. Precavido, trouxera de casa a caneta para preencher ainda a bordo, antes do pouso, o formulário da imigração da Colômbia. Mas Gustavo tinha a clara sensação, a palpável noção, de que não chegaria ao destino, que algo aconteceria de muito, muito ruim. Começou a mordiscar a ponta daquele fino objeto metálico, mas ficou com medo de inutilizá-lo com a força que aplicava com o maxilar. Conseguiu cochilar uns parcos minutos. A glória, o céu? Longe disso.
Quando pensava que nada poderia piorar, começou a perceber um leve tremor na aeronave, cujos ocupantes dormiam tranquilamente. O balançar poderia ser considerado como um colo de mãe para a maioria dos passageiros, um ninar confortável. Não para Gustavo. Para ele, era uma trombeta do apocalipse. De maneira um tanto quanto estabanada, enfiou a mão no bolso da camisa social em busca da caixinha dos remédios contra a ansiedade. Mas terror foi tudo que encontrou ali: o pequeno espaço perto do peito estava vazio, exceto por um papel de chiclete amassado. Tudo que sentia ali era o palpitar frenético do coração, que naquele exato segundo começara a bater ainda mais acelerado. Onde estava a caixa? Olhou no bolsão à sua frente, onde jazia esquecida uma solitária revista de bordo. Nada. Como estava sozinho na fileira de três assentos, em décimos de segundos já estava revistando todo os cantos, mas só achou sujeira, restos de biscoitos e um lápis de cor roxo. Gustavo ficou verde.
Deixou-se então despencar pesadamente no assento. Colocou as duas mãos na testa, que já acumulava rios de suor, e tentou se lembrar da última vez que tomara a medicação. Na lanchonete do aeroporto do Galeão. No balcão da lanchonete, precisamente onde atendera a ligação da filha. O pânico, que já estava instalado, agora ganhara status Diamond Gold Plus Extra Master de passageiro frequente no pobre corretor.
Gustavo tentou fazer um exercício de medidação que aprendera meses antes em um conteúdo patrocinado do Instagram. Mas aos 14 segundos já estava visualizando, no lugar de uma luz azul, o próprio enterro no cemitério do Caju, em seu Rio de Janeiro natal. Olhou pra tela do sistema de entretenimento e viu que o avião ainda sobrevoava Goiás. O voo — e o sofrimento — estavam longe de acabar.
Num ímpeto de força, ele se levantou da cadeira na fileira 39, uma das última do voo, que na madrugada daquela quinta-feira estava vazio — e a passos firmes correu para a traseira do avião. Passos, não. Gustavo estava engatinhando. Em meio a ferragens e estofados de padronagens duvidosas, tentava, em vão, encontrar seu remédio. Só achou mais sujeira e humilhação quando deu de cara, já no fundo da aeronave, com o comissário de voo, que mantinha uma expressão híbrida de “em que posso te ajudar?” com “o que raios você está fazendo aí?”.
“Em que posso te ajudar?”, perguntou o comissário Rivaldo, mas sem conseguir esconder a cara de “o que diabos você está fazendo aí?”
— Minha caixa. Quer dizer, meu remédio. Minha caixa de remédio. Não estou encontrando. Preciso tomar meu remédio.
“Certo, como é essa caixa?”, perguntou Rivaldo, ele mesmo já quase engatinhado no chão insalubre do avião.
— É branca. Retangular. Tem uma tarja preta.
Os olhos de Rivaldo se arregalaram e um fictício alarme vermelho cinematográfico de perigo tocou em seu cérebro.
“Tem o seu nome nela”, continuou Gustavo, olhando a plaquinha no peito do comissário com sua identificação.
“Meu nome está na caixa de seu remédio? Que disparate”, respondeu o funcionário da empresa aérea, usando inconscientemente um termo antigo que vira na véspera em um filme de Almodovar.
— É algo parecido com isso, parecido com Rivaldo.
— Ah, já sei, não precisa dizer mais nada.
— É para o coração, sofro do coração, se não tomar eu morro.
“Sei”, respondeu de forma meio debochada o comissário Rivotrildo, numa mistura de expressão que poderia ser “que bobagem, não precisa mentir” com “vamos encontrar essa caixa”.
Rivonaldo já estava ligando a lanterninha do kit de emergência, para procurar melhor, quando o objeto cilíndrico luminoso foi abruptamente agarrado por Gustavo, iniciando uma luta de puxa, repuxa, puxa, repuxa digna de novela.
— Mas o que há com o senhor? Me deixe fazer meu trabalho!
— Pssssss, meu chefe está ali, ele não pode saber que eu tenho, que eu tenho….
— Medo de voar? E o que há de mais nisso?
“Somos treinados para sermos vencedores. Mindset de vendedores premium. Ter medo é vergonhoso, vergonhoso”, respondeu Gustavo.
— A caixa deve ter caído embaixo de alguma poltrona. Ou eu uso a lanterna ou acendo todas as luzes do avião. E acredite, ninguém que está dormindo ficará satisfeito, não só seu patrão.
— é….é…é porque eu acho que esqueci a caixa na lanchonete do aeroporto.
“Como? O senhor tá me tirando a pagode?”, respondeu Rivotrildson, deixando escapar uma expressão de seu Ceará natal.
A essa altura, Gustavo estava vermelho como um M&M natalino e molhado como estaria um querubim em fonte de praça.
“Ai, meu Deus, não consigo respirar”. Gustavo olhava pra cima como se olhasse pra o Divino. Depois olhava pra baixo. Quando se está voando é fácil perder a noção de onde está o Todo Poderoso.
— Por favor se acalme.
Gustavo sentia a cabeça pesada e os cabelos grudados no couro cabeludo. Duas enormes manchas de suor brotaram sob os braços, apesar do ar condicionado da cabine estar no máximo.
— Eu….estou…estou…eu…vou…desmaiar
“Ai minha Nossa Senhora Aparecida, era só o que faltava”, disse Rivotraldo, tirando uma caixinha e mandando dois comprimidos para dentro, sem água (que ele mesmo teria de servir).
— Você. Você, você tem esse remédio também? Esse tempo todo? E não me deu um?
— Não estamos autorizados a medicar passageiros, senhor. Não somos médicos.
— Pois chame um que estou em pânico, deve ter um a bordo.
— Por favor, não. Eu tenho pânico de gente em pânico, respondeu Rivaltril.
Gustavo, num impulso de desespero e agilidade, arrancou a caixa da mão no comissário e se trancou no banheiro. Estava pronto para tomar os comprimidos com a água suja da torneira.
“Abra, abra”, gritava baixinho o aeromoço enquanto dava leves batidinhas na porta, para não causar um escândalo.
Quando já pensava em acionar o botão que destranca a porta por fora, ouviu um grito lá de dentro.
“Essa caixa é minha!”, urrou, com voz abafada, o passageiro.
Gustavo abriu a porta do banheiro, fazendo o movimento de deglutição típico de quem acabara de tomar uma pílula.
“Essa caixa é minha, eu sempre escrevo ‘Eu amo vocês, minhas lindas Nalda e Meire’”. O corretor tinha esse macabro hábito caso o avião caísse. Assim a esposa o identificaria logo e botaria a derradeira mensagem num quadrinho em frente ao qual rezaria todos os dias.
O passageiro panicado continuou:
— Como é que estava com você?
“Eu, eu, eu estava passando e vi no chão. Peguei para depois guardar no achados e perdidos”, disse Rivoltrol, cada vez mais nervoso.
Gabriel, ainda em pânico e cada vez mais nervoso, retrucou, mantendo a voz baixa.
“Mentira, Mentira sua”, dizia o passageiro enquanto mantinha o dedo em riste, porém tremulante. “A embalagem estava bem dentro de meu bolso. E eu era o único ali. Se você realmente tivesse encontrado no chão saberia logo que era minha”, manteve a acusação.
“Ok, ok. Pare, fale baixo. É verdade, eu peguei de seu bolso. Você estava dormindo e eu estava tranquilamente passando pelo corredor quando reconheci de longe a caixinha”, confessou o trombadinha dos ares. “Tecido barato como o da sua camisa é meio transparente mesmo, não é?”, completou, aproveitando para menosprezar a vítima e tentar ganhar pontos num júri imaginário. “E lembrei na mesma hora que eu estava sem meu remédio para pânico em caso de passageiro em pânico. E você ali me parecia uma bomba voadora, com aquele remédio bem à mostra. Rapidamente, peguei a caixa. Meu plano era roubar só uma cartelinha e devolver o resto pra caixa e deixá-la de novo em seu bolso, mas numa turbulência você despertou. Eu entrei em pânico e sai correndo pro fundo do avião. Depois de muito pensar, achei a solução: deixar a embalagem no chão do seu lado. Mas você já estava engatinhando até a minha direção, que inferno. Tudo o que pude fazer foi esconder o remédio no meu paletó”.
Gustavo, mais calmo, pensou por uns segundos. Pediu um copo de água. Bebeu. Sentou na cadeirinha da tripulação. Olhou Rivatril de baixo pra cima e disse: “Vamos esquecer tudo isso, não vou reportar nada para a empresa aérea. Mas onde já se viu? Tripulante com medo de passageiro medroso?”.
— Acontece nas melhores companhias.
Gustavo deu as costas e começou a voltar para sua poltrona, mas mal dera o primeiro passo e foi logo interceptado pelo comissário.
— Sem querer abusar, será que você me arranja unzinho? Ainda estou me tremendo todo.